domingo, 30 de novembro de 2008

A morte do Pai Natal

Era um pai Natal barrigudo, com longas barbas brancas e um fato vermelho com capuz. Vivia no Pólo Norte e tinha um trenó puxado por seis renas.
Uma noite de Natal, andando ele a distribuir brinquedos, pousou o seu trenó no telhado coberto de neve de uma casa de lousa. Como a chaminé era estreita e o pai Natal não cabia, resolveu descer e bater à porta.
- Quem é? – perguntaram de dentro vozes de criança.
- É o Pai Natal.
- Não pode ser.
- Sou, sou.
- O Pai Natal não existe.
- Existe sim! Sou eu!
- …e nós somos órfãos.
- Coitadinhos!
- E se és o Pai Natal, porque vens bater à porta em vez de entrares pela chaminé?
- Porque a chaminé é estreita e a minha barriga muito grande.
- Balelas! Tu é que não és o Pai Natal!
- Sou eu, sim! Abram-me a porta! Deixem-me entrar!
- Se és o Pai Natal e queres entrar, entra pela chaminé.
O Pai Natal não teve outro remédio. Se queria que acreditassem nele, tinha de entrar pela chaminé. Subiu de novo ao telhado. Despiu a roupa toda e untou o corpo com manteiga, para escorregar melhor. Saltou.
Splash! Em cheio na panela que estava ao lume!
Nunca os meninos tiveram um Natal tão feliz!

Rui Souza Coelho, Fernando Pessoa contra o Homem Aranha,
Lisboa, Ulmeiro, 1986
Desenho in www.carnetsdenuit.typepad.com

Voto de Natal

Acenda-se de novo o Presépio do Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos. E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
Ó calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

1960
David Mourão-Ferreira, "Cancioneiro de Natal" in Obra Poética 1948-1988,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2.ª ed.

Natal

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja,
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroa de espinhos
mas coroa de baionetas,
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó, “Diário de Bordo”, in Alexandre Pinheiro Torres (prefácio, organização e notas), Novo Cancioneiro, Lisboa, Editorial Caminho, 1989

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes, Antologia Poética,
S. Paulo, Companhia das Letras, 1997

O filho do homem

O mundo parou
A estrela morreu
No fundo da treva
O infante nasceu.

Nasceu num estábulo
Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo.

Ao lado do infante
O homem e a mulher
Uma tal Maria
Um José qualquer.

A noite o fez negro
Fogo o avermelhou
A aurora nascente
Todo o amarelou.

O dia o fez branco
Branco como a luz
À falta de um nome
Chamou-se Jesus.

Jesus pequenino
Filho natural
Ergue-te, menino
É triste o Natal.

Natal de 1947

Vinicius de Moraes, Antologia Poética,
S. Paulo, Companhia das Letras, 1997

Natal

O poeta nasceu numa choupana fria
e em cima da palha fria também.
Mas não havia anjos, não havia…
E a noite era agreste, enorme, fria,
E o poeta, no ventre da mãe, já ouvia,
ouvia, nitidamente ouvia, e sentia também,
os gritos da mãe,
- ensanguentados e longos os gritos da mãe.

E não havia estrelas na choupana, não havia…
Só um clarão de incêndio além, além…
- para quê estrelas, se ninguém lá ia?... –
e tornando mais fria a noite fria,
o poeta ouvia, ouvia e sentia também,
mais ensanguentados e longos os gritos da mãe.

Trazia consigo, trazia, trazia
distâncias marcadas, caminhos traçados,
e o ritmo de tudo que no mundo havia
- o que o mundo sabia e não sabia… -
e requintes, e pecados,
e todos os gestos, e todos os dramas,
e milhões de versos quentes como chamas,

e trazia também
- trazia também o sangue endoidado,
revolto e alongado
dos gritos da mãe.

Mas a noite era agreste, enorme, fria,
e um dedo de fogo apontou no além:
o tecto caiu, e enquanto caía,
o poeta sorria, sorria e sorria,
e, depois, ainda ouvia
(ouvia e sentia, também)
- a escorrer, a escorrer na noite fria,
ensanguentados e longos, os gritos da mãe!

Sidónio Muralha, Poemas,
Porto, Editorial Inova Limitada. 1971

sábado, 29 de novembro de 2008

O meu Natal de antigamente

Quando era menina
não havia Pai Natal nem Árvore de Natal.
Armava-se o presépio com chão de musgo
rochas de cortiça virgem ervas a valer
pedrinhas de verdade
e searinhas que se semeavam em pires e latas vazias
no dia 8 de Dezembro
e eram o pequeno milagre o primeiro
a despontar dos grãos de trigo e a crescer todos os dias.
As criaturas do presépio eram de compra
mas também moldei algumas em barro fresco.
Uma vez uma das minhas tias fez casas e igreijinhas de papel
e acendemos velas lá dentro.
Foi um deslumbramento a luz a sair pelas janelinhas!
Mas ardeu tudo de repente.
Desde então só a lamparina de azeite continuou a alumiar
esse parco mundo pobre.

No meu Natal de antigamente havia menos presentes.
Os meninos não exigiam esses brinquedos extrabíblicos:
computadores, jogos de computadores, cêdêroms, sei lá.
Nem o Menino Jesus podia com tanto peso!
Sim, porque no meu Natal de antigamente era o Menino Jesus
quem dava as prendas.
Púnhamos, na véspera, o sapatinho na chaminé
mas tínhamos que ir para a cama esperar pela manhã
porque Ele só descia pela calada da noite
se ninguém estivesse à espreita
(hoje o Pai Natal não tem esses pudores).
Eu imaginava-o a saltar das palhinhas
nuzinho em pêlo
e a Nossa Senhora a agasalhá-Lo logo com a sua capa.
E lá ia Ele
como um menino pobre enrolado no casaco do pai
a contentar todas as crianças do mundo.
O Pai Natal, esse, foi encarregado (não sei por quem)
de dar presentes a pequenos e grandes.
Com o Menino Jesus tudo ficava entre meninos.
E se a prenda não agradava
a gente fazia-lhe uma careta
e até, à socapa, chamava-lhe um nome feio.

O Pai Natal é um palhaço cheio de postiços:
barba bigode cabeleira
até a barriga é uma almofadinha.
E vai à televisão convencer-nos a comprar coisas.
Agora o Natal antecipa o Carnaval.
O Menino Jesus, esse não! nunca ia à televisão
(que para dizer a verdade não existia ainda.)

Mas que menino de hoje trocaria o seu Pai Natal
(gerente de um supermercado de prendas)
pelo meu Menino Jesus
a tiritar nas palhas?

Teresa Rita Lopes, Afectos,
Lisboa, Editorial Presença, 2000

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Litania do Natal

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio, Filho do Homem,
Lisboa, Portugália Editora, 1961

O Natal

Aproximava-se a noite de Natal, naquela comunidade do Sul.

Numa azáfama incontrolável, as ruas da cidade, nessa tarde de 24 de Dezembro, estavam completamente apinhadas. Entrava-se e saía-se dos grandes armazéns, ajoujados das mais variadas prendas para distribuir nessa noite ou na manhã seguinte. Sobretudo os mais novos viviam um momento de euforia procurando que os pais lhe comprassem todos os géneros de brinquedos e guloseimas. Havia nas ruas um ar de festa ouvindo-se, a sair de todas as lojas, alegres cânticos de Natal.

A comunidade festejava, mais uma vez, o nascimento do Salvador.

Ao chegar ao lar, o casal, que passara toda a tarde nas ruas centrais da cidade, nessa loucura feita de alegria e constrangimento por, afinal, não poderem comprar tudo quanto desejariam, encontrou os avós e os sobrinhos-órfãos, sentados, aguardando o seu regresso. Por outro lado, os filhos rodearam-nos, febris, tentando adivinhar que presentes iriam receber, um pouco mais tarde, após a ceia.

Chegadas as 10 horas da noite toda a família se sentou em volta da mesa para a refeição festiva.

A mãe veio da cozinha, ajudada pelas duas avós, trazendo uma enorme bandeja que, solenemente, pôs em cima da mesa. Imediatamente toda a pequenada se lançou, com voracidade, sobre a iguaria, constituída por um robusto homem moreno, assado com batatas louras, em molho de vinho tinto da região. Os pais puseram cobro àquele assalto desordenado e dividiram, irmãmente, o homem.

A comunidade que, então, festejava o Natal, era, como já se aperceberam, uma comunidade de perus.

Orlando Neves, A Condecoração, Lisboa, Edições Rolim

Melopeia de Dezembro

A menina tinha fome,
Tinha frio o irmãozinho.
Louvado seja Deus, santo o seu nome!
O Pai Natal vem a caminho!

Na rasa tábua da mesa,
Não havia pão nem vinho.
Mais pobre é quem odeia, é quem despreza!
O Pai Natal vem a caminho!

Seca o leite à mãe viúva,
No murcho seio maninho.
Transformar-se-á em leite a água da chuva!
O Pai Natal vem a caminho!

Levantando em frente os braços,
Apalpa treva o seguinho.
Faça-se luz diante de seus passos!
O Pai Natal vem a caminho.

Ninguém vela o moribundo
No seu grabato de pinho.
Vai-se-lhe abrir, por fim, o Novo Mundo!
O Pai Natal vem a caminho!

Crucifica-se o inocente,
Perante o riso escarninho.
Sobe direito ao céu, corpo pendente!
O Pai Natal vem a caminho!

Sem chão, sem pão, sem paz, sem luz, sem ar,
Cada um morre sozinho.
Morrer será ressuscitar!
O Pai Natal tem bem que andar…
O Pai Natal vem a caminho!

José Régio, 16 Poemas dos Não Incluídos em “Colheita da Tarde”, 1971

A propósito do Natal

Após o bem conhecido episódio da Estrela do Oriente
o colérico Herodes gritou aos seus sicários
“Matem as crianças;
matem todas as criancinhas!”
Redigiu uma proclamação bilingue: judeu e latim,
e como gostava muito de provérbios, declamou:
“Mais vale prevenir que remediar!”

Os sicários dispersaram em toda as direcções,
contrataram auxiliares
e sem perda de tempo iniciaram a matança
de que falam os livros da especialidade.

Várias espadas partiram com o uso excessivo;
durante algum tempo os cofres dos armeiros
receberam o sorriso da fortuna.

Apesar disso
nada serviu a Herodes o saber de ofício:
como bem se recordam a Criança escapou.
.............................................................................

Hoje Herodes empregaria armas modernas:
radar, cães-robots, espiões magnéticos,
aviões de pesquisa meteorológica…
E por certo a Criança uma vez mais
cresceria saudável e robusta.

Herodes voltaria a não compreender nada.
Mas estaria seguro de si aos microfones
e os directores de cemitérios enviariam
belas mensagens e flores de parabéns.

Egito Gonçalves, in Jerónimo de Sousa, Os Poemas da Minha Vida, Lisboa, Público, 2005

Foto in
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/oceanoculturas/05.html

Natal

As emissoras difundem
a mensagem de Natal
do Presidente da Cruelândia:
- Inventámos um novo míssil
capaz de destruir
em pleno silêncio
o ventre da mais pequena
semente
da terra.

As sementes no entanto prosseguem
em seu ofício
de liberdade. Indiferentes
aos mecanismos
da usura e da gurra. Operários
da paz
no centro da terra.

Casimiro de Brito

Os animais do presépio

Salve, reino animal:
todo o peso celeste
suportas no teu ermo.

Toda a carga terrestre
Carregas como se
fosse feita de vento.

Teus cascos lacerados
na lixa do caminho
e tuas cartilagens

e teu rude focinho
e tua cauda zonza,
teu pêlo matizado,

tua escama furtiva
as cores com que iludes
teu negrume geral,

teu vôo limitado,
teu rastro melancólico,
tua pobre verônica

em mim, que nem pastor
soube ser, ou serei,
se incorporam num sopro.

Para tocar o extremo
de minha natureza,
limito-me: sou burro.

Para trazer ao feno
o senso da escultura,
concentro-me: sou boi.

A vária condição
por onde se atropela
essa ânsia de explicar-me

agora se apascenta
à sombra do galpão
neste sinal: sou anjo.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001

Loa

Meu Menino Jesus dos triguinhos no prato,
Não enxugues a tua lágrima de vidro,
Não apagues a tua estrela de prata suspensa no quarto ainda morno,
Não deixes envelhecer os velhos tios de retábulo
Ajoelhado em torno:
Deixa estar as palhinhas urinadas no estábulo,
Que a chuva cheira bem e o pão tufa no forno.
Doira, Menino Jesus, aquele milho amarelo
Que o Joaquim Pacheco secou na escuridão do seu muro,
E manda um navio de nevoeiro
Pela primeira vaga que vires redonda e rebentada:
Tua mão outra vez a atira contra a noite,
Como se não tivesse batido nessa grande praia parada.
E deixa as minhas faltas à missa,
Esquece os pontos fracos da minha velha teologia,
E o orgulho, a razão, o materialismo passageiro…
Mandes tu pelo mar o navio de nevoeiro!

Vitorino Nemésio, Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1988

Foto in www.instituto-camoes.pt

Assim se retomam os textos relacionados com o tema NASCER, que adoptámos para este mês de Novembro, como preparação para os encontros poéticos da época natalícia. E, agora, sim, teremos poemas com referências directas ao Natal.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Amanhã, Quartas Mal Ditas no Clube Literário do Porto

Amanhã, 22 horas, mais uma sessão das Quartas Mal Ditas no piano-bar do Clube Literário do Porto, à Rua Nova da Alfândega, n.º 22.

Tema:
CAFÉS DA MINHA PREGUIÇA

Convidados:
MANUEl ANTÓNIO PINA
ÁLVARO MAGALHÃES
TOMÁS CARNEIRO

Leituras por: Anthero Monteiro, António Pinheiro, Isabel Marcolino, Luís Carvalho, Mário Vale Lima, Marta Tormenta, Rafael Tormenta e pelos convidados

Coordenação: Anthero Monteiro

QUARTAS MAL-DITAS: Poesia, Música, Conversas, Pretextos de aprendizagem

Fotos do Quarto Crescente (100 anos de Vale do Vouga)
































São assim as noites de Poesia na Biblioteca Pública de S. Paio de Oleiros - e muito mais que não pode ser visto nas imagens: 80 pessoas, mais de uma dezena de diseurs da Onda Poética e outros, duas dúzias de poemas, a belíssima voz e a guitarra acústica do Vítor Ferreira, entusiasmo, participação, boa disposição e, a culminar a sessão, os doces tradicionais da terra, o vinho e o convívio entre todos,
Assim se comemorou o 100.º Aniversário da inauguração do caminho-de-ferro do Vale do Vouga, com poemas todos relacionados com os comboios, com o antigo chefe da estação local (Raul Latada) a dar o apito de partida da locomotiva poética e com o cantor a interpretar o Hino do Vale do Vouga.
A iniciativa não fez parte das comemorações oficiais, pelo menos não houve representantes oficiais, a não ser da Junta de Freguesia local, mas foi, mesmo assim, uma noite histórica.
Para alguns S. Paio de Oleiros não vem no mapa, mas não há dúvida de que o Quarto Crescente já consta há muito dos roteiros poéticos do nosso país, como uma das sessões mais participadas e calorosas.

(Com os agradecimentos à Fotoliveira)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Quarto Crescente: fotos de sessões anteriores







































São assim
as sessões
do Quarto
Crescente
na Biblioteca
Pública de
S. Paio de
Oleiros:
muita participação, poesia, música. animação e, no final, o já célebre convívio "mastigante", com vinhos e bolos tradicionais da terra.
Vai valer a pena aparecer no próximo sábado, às 21.30, para comemorar o centenário da linha-férrea do Vale do Vouga, ler e ouvir poesia, conviver e "combeber".
Não faltem.
_________
Localização:
S. Paio de Oleiros fica a 11 quilómetros de Santa Maria da Feira e a 5 de Espinho.
O melhor trajecto para lá chegar do Norte ou do Sul:
pela A29, sair em Esmoriz-Picoto, seguir a indicação Picoto e, na primeira rotunda, a placa S. Paio de Oleiros. Descer, descer, descer (várias curvas), seguir sempre em frente, passar pelas bombas de gasolina, seguir, seguir até passar a estação de SAMPAIO-OLEIROS e sobre a linha-férrea com guarda. Adiante 100 metros, virar no entroncamento à esquerda. Logo adiante à esquerda fica o BPI. Seguir sempre em frente (não ligar a uma rua à direita e a outra adiante à esquerda), até chegar ao um cruzamento (à esquerda, um casarão; à direita, um pequeno jardim). Virar aí à direita para Igreja / Centro / Casa de Cultura. A Biblioteca Pública fica adiante 300 metros, à esquerda (edifício com colunas azuis). Estacionar logo a seguir na rua à direita ou nas imediações.

Quarto Crescente / S. Paio de Oleiros


Sábado,
22 Novembro,
21.30 horas

BIBLIOTECA
PÚBLICA DE
S. PAIO DE OLEIROS

POESIA SOBRE CARRIS

Comemoração do
100.º Aniversário da
linha-férrea do
Vale do Vouga

Presença da
Onda Poética

Coordenação de
Anthero Monteiro

Exposição, Música, Vinhos, Petiscos
e...a tua indispensável presença.

Traz-te a ti mesmo(a) e a mais alguém.
Vamos pôr o comboio da poesia na linha.


domingo, 16 de novembro de 2008

Não

1.
Venham todos os meninos nascidos nas palhas
duma mãe camponesa de braços vergados aos molhos de espigas
e dum pai carpinteiro.
Venham todos os vultos das docas sombrias
e todas as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha.
Venham todos os moços de braços inúteis
e todas as raparigas de olhos desiludidos
e todos os velhos que não tiveram mocidade.
Venham.
Vamos gritar que não!
Dos nossos braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nossos braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis.
Mas as máquinas traíram.
E os aeroplanos traíram.
E ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
E ficou só um campo coalhado de mortos.
Venham.
Vamos dizer que não!
O sopro de amor que chicoteou as veias
estendeu-nos os braços para novas ferramentas,
para a construção imensa da Cidade Nova.
Mas o corpo ficou-nos agarrado ao abraço pegajoso da carne machucada.
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis.

2.
Nos intervalos do almoço,
sentados nos andaimes cheios de manchas de cal
ou na beira do rio,
vimos erguer-se de nossas mãos calosas a realização mais lírica de todos os tempos.
Os nossos fatos estavam manchados de óleo, companheira,
e as nossas botas carregadas de barro.
Mas que interessa o óleo, companheira, e o barro,
se os teus olhos estavam imensamente rasgados para horizontes desconhecidos,
como duas estrelas projectadas da noite?
Depois veio a traição dos aeroplanos e das máquinas inimagináveis,
a traição dos corpos agarrados à carne machucada,
a traição da cabeça partindo para sonhos impossíveis.
E ficou só o óleo e o barro,
as manchas de cal e o rio abandonado...
e as nossas lágrimas impossíveis de estancar.

3.
Um velho sábio de olhos transparentes,
que nos pousava a mão no ombro com ternura,
depois de ver nos livros e nos tubos de ensaio
o destino dos homens,
queimou os livros todos e afogou-se no rio.
E nunca mais ninguém nos pousou a mão no ombro
com a ternura do sábio que se afogou no rio.

4.
Uma rapariga loira que vendia laranjas
e enchia as ruas com a sua voz túmida de sol
desapareceu.
E as ruas ficaram para sempre silenciosas.
E as ruas ficaram para sempre sem sol.

5.
Multiplicaram-se os meninos nascidos nas palhas
e os vultos sombrios das docas sombrias
e as mulheres tristes das ruelas de lâmpada vermelha
e as raparigas de olhos desiludidos
e os velhos que não tiveram mocidade.
A camponesa continua de pé no campo com as saias ao vento.
Mas já não tem os braços vergados pelas espigas
porque as searas ficaram por ceifar.
Os aeroplanos enevoam o céu.
E as máquinas inimagináveis trabalham, trabalham.
Mas ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
Mas ficou só um campo coalhado de mortos.

Ah! Venham!
De todos os campos, de todas as cidades, de todos os portos, de todos os mares.
Venham
Vamos dizer que não!

Mário Dionísio, Poesia Incompleta,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 1966
Pintura de Mário Dionísio, ibidem.

Não me chamem pelo nome

Não me chamem pelo nome
Que me deram ao nascer;
Sou como a folha caída
Que não chegou a viver.

Se eu sem riquezas nasci,
Cheguei a sonhar com elas
Na esperança de ser alguém;
Mas bem depressa deixei
A tortura de quem quer
Conquistar o que não tem.
Os nervos mortos, na terra
dos meus planos iludidos,
Mentiram à própria fome!
Por isso nesta indiferença
Peço apenas: - e é tão pouco!,
Não me chamem pelo nome.

Sou como a folha caída
Pisada por quem passeia
Alheio à luz e à beleza;
E de todas as venturas,
Só me encontro nos silêncios
Que tem a minha tristeza.
Perdi-me no sofrimento
Que nos dão as aparências
Que julgamos entender...
Da vida não quero nada;
E não me falem no nome
Que me deram ao nascer.

Sou como a flor esquecida
Nos canteiros da ilusão
De um jardineiro traidor,
Sou como fonte discreta
Entre folhagens cantando
Tristes cantigas de amor;
Ao fim de tanta vileza
Já não me posso iludir
Com as promessas da vida!
Tudo em mim sabe a derrota,
E até da morte duvido
- Sou como a folha caída.

Sou como tudo que passa
No giro do pensamento
De uma criança a brincar;
E os meus mais débeis desejos
Morrem aos ais na lembrança
De quem se esqueceu de amar;
Nada no mundo me prende;
Nem a saudade de um beijo
Num momento de prazer!,
- Pobre corpo sem destino,
Renúncia firme de artista
Que não chegou a viver.

António Botto, As Canções de António Botto,
Lisboa, Edições Ática, 1975, 15.ª ed.

N. 1900, Concavada (Abrantes)
F. 1959, Rio de Janeiro.

«António Botto é o único português, dos que hoje conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. (...) Artistas tem havido muitos em Portugal; estetas só o autor das Canções».
Fernando Pessoa, «António Botto e o ideal estético em Portugal» in Revista Contemporânea, vol. I, n.º 3, ano I, 1922

Rapaz do bairro da lata

Nasci no Vale Escuro
Brinquei entre latas
Pulei o alão
Andei à pedrada
Escorreguei no muro
Caí no jará
Ganhei no pião.
A jogar à bola
Perdi a sacola
Mais o que trazia
A fugir ao guarda
Que nos perseguia.
Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!

Já rapaz crescido
Sequer fui ouvido
Só meu pai o quis:
Entrei de aprendiz
Para uma oficina
Minha melhor sina
Ofício gritado
Estalo safanão
Era um pau-mandado
Nas mãos do patrão.

Lembrança de jogos
Que tanto gostava
Deu-me pra pensar
Que jogo era aquele
Que só um jogava?
E no doutro dia
Logo que o patrão
Levantou da mão
Para a bofetada
Peguei num martelo
Entrei na jogada.

Mudei de oficina
Subi de aprendiz
Dobrei uma esquina
Minha vida fiz.
Na escola nocturna
Meti-me a estudar
Tenho namorada
Vamos namorar
Tenho amigos certos
Vamos trabalhar
Todos a lutar
Pelas coisas da vida
Que queremos viver!

Manuel da Fonseca, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 8.ª ed.

Foto in: http://boomer-cafe.net/version2/index.php/Modes-de-vie-des-annees-50/Des-bidonvilles-aux-portes-de-Paris.html

sábado, 15 de novembro de 2008

Imagens da última Onda Poética (13 Nov. 08)






























































Mais uma sessão: foi a 118.ª, sobre os "Sortilégios da Noite".
Aspectos do Grupo de Baladas Nostalgia, da assistência e de alguns residentes, por esta ordem:

Manuela Correia,
Maria Mar,
Rafael Tormenta,
João Arezes e
Luís Carvalho.

O Coordenador agradece às seguintes entidades a prestimosa colaboração prestada:

Junta de Freguesia de Espinho,
Grupo de Baladas Nostalgia,
Defesa de Espinho
Maré Viva e
Espinho TV

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Junto à água

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

Manuel António Pina,
in Egito Gonçalves e Rosa Alice Branco (organização e selecção), Das Tripas ao Coração,
Porto, Campo das Letras, 2001

Manuel António Pina, com Álvaro Magalhães e Tomás Carneiro, são os convidado da próxima sessão das Quartas Mal Ditas, do Clube Literário do Porto, dia 26 de Novembro, subordinada ao tema "Cafés da Minha Preguiça".

Vale a pena ler a crónica de Manuel António Pina ("POR OUTRAS PALAVRAS"), inserta no JN de hoje e que prova, por a + b, que, no diferendo entre os professores e a Ministra da Educação, são eles quem tem razão.
Leiam-na aqui

Hoje, sessão 118 da Onda Poética


Só para lembrar.
Começa às 22 em ponto,
antecedida de convívio
entre os residentes
e o público na sala
das sessões ou no
café contíguo.
Levem textos, amigos
e amigas e
...um outro olhar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

da vida humana 1

dizem que vais nascer; que há métodos de
determinar-te o sexo. que a tua mãe deseja
respirar o teu sopro, tua mobilidade,
teu mamar; tirar o teu retrato.

para quê prever-te o nome ou preparar
roupas rendadas? ninguém há-de cumprir-te
que te cumpras, e tentarão salvar-te a alma
com água e óleo e sal.

virás a amar alguém? a adoecer
apesar das vacinas? a sentar-te
nas margens do real a contemplá-lo
tristemente? jogarás à bola, ao pião,

mais tarde ao sete e meio?
para quê ser loquaz do teu futuro?

Vasco Graça Moura, Poesia 1963-1995,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2001

O filho é o carrossel...

O filho é o carrossel à volta da mãe

O carrossel no coração da mãe

A luz dos carrosséis e a música

E leva a mãe no seu cavalo

O cavalo gira à volta viúvo



A mãe é a festa sempre em luto

Por isso aviva a luz como quem mergulha nela

E conhece o escuro como quem já só faísca

Na criança

E procura um brilho, o metal que não oxida



Eles são uma roleta em voltas sucessivas

O tambor de um revólver

O estoiro de uma bala repentina



A viuvez é um buraco no centro da cabeça

A família é um buraco absurdo sobre a casa

- uma gruta sem acesso -

Há um cadáver nos olhos do acaso

Cheira a pólvora como o instante que dispara

E está imóvel como um dia sem saída



O carrossel tem um cavalo que galopa

O menino tem rédeas e espera

A idade da despedida



Daniel Faria, Homens que São como Lugares mal Situados,
Porto, Fundação Manuel Leão, 1998

Consultar blogue oficial do poeta in http://www.danielfaria.org/daniel.swf
Foto in http://www.agencia.ecclesia.pt/ecclesiaout/snpcultura/impressao_digital_daniel_faria_2.html

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Noite da próxima quinta-feira, dia 13 / Convite

Os poemas que serão lidos nesta sessão são essencialmente muitos dos que foram colocados neste blogue durante o mês de Outubro, além de outros seleccionados segundo o critério dos residentes.

Do programa consta ainda um
MOMENTO DOS ESPONTÂNEOS,
aberto a todos os interessados
e de tema livre.
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A sessão inicia-se exactamente às 22 horas,
ainda que os residentes estejam na sala ou no café contíguo às 21.30 horas, para um prévio convívio alargado a todos os interessados.
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A sessão terminará no máximo às 0.30 horas.

domingo, 9 de novembro de 2008

Semente

Eis
dois dos gigantescos braços
demolidores,
construtores
de cidades.

Eis
dois dos olhos perscrutadores, olhos imensos
e solares.
Eis dois dos formidáveis pés
rompendo entre estrelas e sangue
as estradas reais.

Oh, maravilha:
Um simples menino
ainda na barriga da mãe.

Papiniano Carlos,
A Ave sobre A Cidade, Porto, Liv. Paisagem, 1973
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Foto A. M.:
Papiniano
Carlos,
hoje mesmo,
09/11/08,
dia do seu
90.º aniversário,
na homenagem
que lhe foi
prestada no
Ateneu
Comercial do
Porto.


sábado, 8 de novembro de 2008

Soneto da fiel infância

Tudo o que em mim foi natural - pobreza,
Mágoas de infância só, casa vazia,
Lutos, e pouco pão na pouca mesa -
Dói na saudade mais que então doía.

Da lamparina do meu quarto, acesa
No pequeno oratório noite e dia,
Vinha-me a sensação de uma riqueza
Que no meu sangue de menino ardia.

Altas horas, rezando no seu canto,
Minha mãe muitas vezes soluçava
E dava-me a beijar não sei que santo.

Meu Deus! Mais do que o santo que eu beijava,
Faz-me falta o cair daquele pranto
Com que ela junto ao peito me molhava.


Ribeiro Couto, Entre Mar e Rio,
Lisboa, Livros do Brasil, 1952

O autor nasceu em Santos- Brasil em 1898 e morreu em Paris em 1963. Jornalista, diplomata, poeta, romancista, sua obra mais conhecida é Cabocla (1931), romance várias vezes adaptado para televisão. Em 1958, conquistou, em Paris, o prémio internacional de poesia outorgado a estrangeiros, pelo livro Le jour est long , escrito em francês. Esteve em Portugal entre 1943 e 1946 e viajou pelo nosso país. Resultado disso foi o livro de poemas Entre Mar e Rio, que dedicou ao seu avô materno, que era lisboeta. Nele aborda aspectos da nossa história, quadros da nossa paisagem, cenas das nossas tradições e costumes.
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A foto é antiga. Tem quase quantos anos tenho... e o puto é parecido comigo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O meu ribeirinho


salto o valado dos anos eriçado de silvas
para regressar àquele lugar
junto ao pequeno rio da minha terra
serpenteando no fundo das quebradas

depois da escola
era a escola da natureza e da vida
e a vida ali transbordava
para as margens da infância

e enquanto os alfaiates se atarefavam
a costurar aquela veste absolutamente diáfana
os girinos cabeçudos dançavam sempre
numa festa que se julgava interminável

chalravam no riacho as rãs o seu hino da alegria
e as lavadeiras coaxando sobre os romances da aldeia
batiam na pedra a roupa que depois
ia a corar na orla verde do rio

era bom ver o ribeiro a correr alacremente
para os braços do futuro
ignorando que o futuro seria um amanhã
que não poderá mais cantar

hoje o ribeiro apenas se adivinha sob o alcatrão das ruas
construídas para criar mais pontes entre os homens
que por ali perpassam vertiginosamente
para um valado de rosas apodrecidas

só eu continuo a atravessá-lo
saltando de pedra em pedra

Anthero Monteiro, Sulcos da memória e do esquecimento,
Porto, Corpos Editora, 2013

Foto A.M.

Declaração dos Direitos da Criança

Tenho direito a ter um nome
e uma nação
Tenho direito a não ter fome
e a ter pão

Tenho direito à liberdade
Tenho direito à igualdade
Tenho direito à educação

Tenho direito a ter amor
e compreensão
seja qual for
a minha raça a minha cor
ou religião

Tenho direito a tratamento
Tenho direito a alojamento
Tenho direito à distracção

Tenho direito à amizade
e à protecção
da negligência crueldade
ou exploração

Tenho direito à segurança
Tenho direito a ser criança

CUMPRA-SE ESTA DECLARAÇÃO


Anthero Monteiro, A Lia Que Lia Lia,
Espinho, Elefante Editores, 1999

Na Escola EB 2/3 SáCouto, de Espinho, onde dei aulas durante cerca de 30 anos, há um mural, dentro de uma sala de aulas, com este poema inscrito e ilustrado por alunos daquele estabelecimento. Digo "há", mas ainda havia na última vez que revisitei a escola. Nada é eterno, mas é imenso o prazer e a honra que sinto ao deparar com este sinal da minha passagem por aquelas salas.

Hoje, quando regresso a essa escola ou vou a qualquer outra (e faço-o muitas vezes), vejo claramente que ser professor já não é a mesma coisa. Não por culpa da classe docente, que foi preparada para tudo, menos para ser pessoal de secretaria ou auxiliar de apoio, mas por culpa de quem continua a fazer dos professores simples máquina de transmissão de um Ministério sem ideias e sem qualquer rigor pedagógico. Não tardará muito vermos os professores com uma pano do pó e um aspirador ou uma vassoura nas mãos...

Esta é também uma forma de solidarizar-me com os professores, que hoje não têm tempo sequer para preparar convenientemente as suas aulas ou conhecer devidamente os seus alunos. É cada vez maior a carga dos seus deveres e nada se sabe sobre os seus direitos.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Poeta

Lembras-te, Mãe

do menino que perdeste
e que ficou
mas que fugiu...?

Anda agora pela vida...

É o poeta dos olhos molhados
do sorriso triste
dos dedos longos...

Anda agora pela vida...

E um dia, Mãe
ele há-de voltar
novamente,
para lhe aqueceres as mãos frias
e chorar com ele as ilusões perdidas.

Entretanto,
deixa-o sofrer mais algum tempo.

João José Cochofel, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Caminho, 1988

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Primeiro dia

Depois será como se nascêssemos de novo,
trouxéssemos para o dia
a nossa mais funda e mais bela face.

Dia de chuva solar em nossos cabelos ilimitados.
Ergueremos os ombros cansados.
E nos reveremos nas águas
do próprio rio que somos, inextinguível.

Pousarão as aves marinhas e as terrestres
nos nossos ombros escorrendo sol e limos,
e as rãs adormecerão nos pauis
onde nos diluímos sôfregamente raízes.
E os peixes e os navios navegarão em nosso sangue,
na maior das navegações
de todos os tempos.

Erecto estará nosso braço, e formidável.
Sob as nossas mãos
crescerão as formas anunciadas.
E as palavras nos brotarão dos lábios,
e serão searas
e aves do tamanho do mundo.













Papiniano Carlos,
A Ave sobre a Cidade,
Porto, Livraria Paisagem, 1973


Papiniano Carlos faz 90 anos no próximo domingo, dia 9 de Novembro.
Pelas 17 horas desse dia, decorrerá no Ateneu Comercial do Porto, uma HOMENAGEM AO POETA E AO CIDADÃO, organizada pelas seguintes entidades:

Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto
Ateneu Comercial do Porto
Círculo de Cultura Teatral/TEP
Cooperativa Árvore
Sector Intelectual/PCP
UNICEPE
URAP

Será usada a palavra para destacar a vida e obra deste poeta, acontecerá um momento poético-musical e será apresentada uma brochura com textos de e sobre ele.

Hoje mesmo, na sequência também dos promissores resultados eleitorais americanos, o autor deste blogue e o excelente diseur FILIPE CARVALHO lerão, na noite de poesia do Púcaro's Bar, nos Arcos de Miragaia, o extraordinário poema "CANTO FRATERNAL" de Papiniano Carlos, escrito para comemorar a vitória sobre o fascismo na Europa, ocorrida em 8 de Maio de 1945.

Bucólica


A vida é feita de nadas

de grandes serras paradas

à espera de movimento;

de searas onduladas

pelo vento;


de casas de moradia

caídas e com sinais

de ninhos que outrora havia

nos beirais;


de poeira;

de sombra de uma figueira;

de ver esta maravilha:

meu pai a erguer uma videira

como uma mãe que faz a trança à filha.


S. Martinho de Nata, 30 de Abril 1937

Miguel Torga, Diário I, 1941, Poesia Completa, 2000
Foto A.M.

As mãos de meu pai

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram
ou fremiram da nobre cólera dos justos...
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama
simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predilecta,
uma luz parece vir de dentro delas.
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem ajunta uns pobres gravetos
e tenta acendê-los contra o vento?
Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas...
essa chama de vida que transcende a própria vida ...
e que os Anjos um dia chamarão de alma.






Mário Quintana, in Colóquio/Letras n. ° 54, Março 1980

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Renascer

Novo redentor -
A nova era impacientemente olha
Para o caminho da tua vinda.
Que mensagem trouxeste
Ao Mundo? Na arena mortal
Que lugar foi preparado para ti?
Que nova morada
Trouxeste para ser usada
No culto de Deus no Homem? Que canção celestial
Ouviste antes de vires?
Que grande arma para o combate do mal
Colocaste na aljava, à cintura
Do jovem guerreiro?
Será que tu, talvez onde um mar de sangue mancha o teu caminho,
Onde há maldade e discórdia,
Construirás um mundo de paz,
Um lugar de encontro e peregrinação?
Quem poderá saber se está escrita na tua fronte
A invisível marca
Do triunfo de alguma grande causa?
Hoje procuramos o teu nome por escrever:
Pareces estar fora do palco,
Como uma iminente estrela da manhã.
As crianças voltam a trazer
Uma mensagem de confiança -
Parece que prometem redenção, luz, amanhecer.

Rabindranath Tagore, Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

Poeta indiano, amigo de Gandhi, nasceu em Calcutá em 1861. Prémio Nobel da Literatura em 1913.
Na apresentação deste livro, feita por José Agostinho Baptista, pode ler-se:
«...em tempos de fealdade e destruição que nos afligem, é importante e quase sagrado que esta poesia se eternize, que a sua música não deixe de tocar, que os poemas da estirpe de Tagore continuem a marcar indelevelmente os territórios da palavra.»

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.

28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)

Das outras, 10 por cento
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente, no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raprigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.

A que sobeja
chamava-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.

António Gedeão, Poesias Completas - 1956-1967,
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.

Impossível não lembrar o Quim Maia e o seu chapéu à zambarina.
Era o seu poema predilecto e muitas vezes o li no Púcaros Bar em sua homenagem, depois que resolveu deixar-nos órfãos da sua boa disposição e do seu anedotário (e a elas, viúvas dos seus maliciosos piropos...).
Aqui fica mais esta homenagem, recordando esse amigo, mas homenageando também a minha mãezinha (linda, como a foto pode comprovar).

Poema do homem-rã

Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.

Oh que insólita beleza!
Festivo arraial submerso.
Poema em líquido verso.
Biombo de arte chinesa.
No colóquio voluptuoso
dessa alegria pagã,
babam-se os olhos de gozo
na máscara do homem-rã.

Suspensas e sonolentas,
rendas de bilros voláteis,
esboçam-se as formas contrácteis
das medusas nevoentas.
Num breve torpor elástico,
como dobras de sanefas,
estremecem as acalefas
e as alforrecas de plástico.

Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.
Passam por entre as lisonjas
das anémonas purpúreas,
por entre corais e esponjas,
hipocampos e holotúrias.

Sob o luminoso feixe
correm de um lado para o outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem.
É tudo meu, tudo meu.

António Gedeão, Poesias Completas - 1956-1967,
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.

O menino e o crocodilo

é a agua o seu reino
ali flutuam os seus sonhos de peixe alado
e flutua também seu meio corpo
com um projecto de pernas

já as não tinha quando nadava
com a mesma desenvoltura e prazer
na piscina do ventre mais terno

as mãos abrem as ondas
e os braços abraçam aquela madrasta
essa vida que lhe não soube sorrir
e a quem sorri sem ressentimentos

ali ao pé emerge ainda um crocodilo
e o menino sorri-lhe também

Não foi ele quem lhe amputou os membros
nem será ele a amputar-lhe
aquele sorriso que promete incendiar a vida

aliás o crocodilo é de plástico
e é o seu brinquedo preferido


Anthero Monteiro (inédito)

Infância (e a Ana também)

impossível resistir: a poesia
regressa sempre ao local
da infância

vou urdindo o poema
com tramas de memória
- e o papel impaciente

acalmo-o
acaricio-o com o instrumento da escrita
uma quilha a romper as ondas de outrora

e é quando tudo promete
que um diabinho palrador
se aproxima e me pede colo

e lá se vão os versos sobre a infância

impossível resistir: que importa
perder um poema
quando se pode ter nos braços
toda a poesia do mundo?

Anthero Monteiro (inédito)