segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Pouco mar








Foto
A.M.






perante a maré cheia dos teus olhos
envergonha-se o mar de ser tão pouco
e é só acidental o infinito

ao ver como são sôfregos teus lábios
já recolhem os polvos as ventosas
e as lapas nada mostram aos rochedos
de quanta obstinação eram capazes

andam as ondas a aprender requebros
ao ritmo dessas ancas tão volúveis
e ao ver quanto um do outro teus joelhos
fugiram a fingir que se não querem
desabotoam risos flores profundas
e libertam seus raios as actínias

como os dedos das águas imiscuindo-se
rebuscando segredos pelos seixos
essas mãos agem ágeis com denodo
e encontraram num ápice o tesouro
que escondi na avidez de o ver roubado

este mar nada sabe nem suspeita
da volúpia do sal dos teus eflúvios
da tontura abissal do teu pescoço
do pântano dos olhos que me perdem
do marulhar da voz que me afogou

foi quando nós nos fomos abraçados
que o aturdido oceano onda após onda
veio estudar na areia que foi nossa
os signos que escreveu tanto desejo

- mil carateres gravados numa folha
vinte metros quadrados de paixão

Anthero Monteiro,
Sete Vezes Sete Nuvens, Porto, Egoiste, 2010

Visitação












Quando a porta se abriu,
perguntaste quem era.

Não se pergunta ao amor
que nome tem.

Albano Martins,
Escrito a Vermelho, 1999

Teoria do caos
















de repente bateram
a porta rompeu-se e o telhado saltou
de repente esvoaças
e tens muitos pés enrolados nas nuvens
de repente ardem-te na fronte
constelações de olhos em fogo
de repente nem sabes
porque é a arca do peito um palco de concerto
de repente o planeta
descarrila e ganha sucessivas órbitas
de repente és irmão
não apenas dos homens mas das pedras também
e dos vermes e dos mastodontes
de repente és ventríloquo
e louco e funâmbulo
de repente fazes estranhas prestidigitações
e ofereces o corpo aos tigres e aos pumas
de repente és capaz de engolir facas
e espadas e raios e abismos

muitas vezes ouviste falar das borboletas
que batem as asas na china
e provocam ciclones nos antípodas
não deve espantar-te por isso que um simples sorriso
do outro lado da mesa
possa causar deste lado

o mais terrível dos cataclismos

Anthero Monteiro, Sete Vezes Sete Nuvens, Porto, Egoiste, 2010constelações de olhos em fogo
de repente nem sabes
porque é a arca do peito um palco de concerto
de repente o planeta
descarrila e ganha sucessivas órbitas
de repente és irmão
não apenas dos homens mas das pedras também
e dos vermes e dos mastodontes
de repente és ventríloquo
e louco e funâmbulo
de repente fazes estranhas prestidigitações
e ofereces o corpo aos tigres e aos pumas
de repente és capaz de engolir facas
e espadas e raios e abismos

muitas vezes ouviste falar das borboletas
que batem as asas na china
e provocam ciclones nos antípodas
não deve espantar-te por isso
que um simples sorriso do outro lado da mesa
possa causar deste lado
o mais terrível dos cataclismos

Anthero Monteiro
constelações de olhos em fogo
de repente nem sabes
porque é a arca do peito um palco de concerto
de repente o planeta
descarrila e ganha sucessivas órbitas
de repente és irmão
não apenas dos homens mas das pedras também
e dos vermes e dos mastodontes
de repente és ventríloquo
e louco e funâmbulo
de repente fazes estranhas prestidigitações
e ofereces o corpo aos tigres e aos pumas
de repente és capaz de engolir facas
e espadas e raios e abismos

muitas vezes ouviste falar das borboletas
que batem as asas na china
e provocam ciclones nos antípodas
não deve espantar-te por isso
que um simples sorriso do outro lado da mesa
possa causar deste lado
o mais terrível dos cataclismos

Anthero Monteiro


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Torre dos Clérigos










Torre dos Clérigos
vista do poente
(Foto de 
Carolina Dias de Marques)







quando uma torre se levanta é para usar da palavra
traz algo nos lábios para dizer    histórias  
lembranças   saudações   augúrios

quando esta porém se erige acima de todos os coruchéus
acima dos outros campanários   acima do nevoeiro
não estira apenas o pescoço da curiosidade
para saber se o rio que desliza no sonho dos séculos
vai vestido de azul ou de ouro
ou para espreitar os acenos brancos das velas dos rabelos
ou o sulco das outras embarcações

orador sagrado num púlpito excelso
ébrio da eloquência de um  infinito azul
aponta o incomensurável como rumo
faz o panegírico da verticalidade
promete a bem-aventurança que mora no alto

sineira e crucífera deveria talvez
apetecer-lhe apenas a salvação das almas
mas esta torre granítica ereta acima das demais
já ali estava há muito de olhos postos no poente
vaticinando que seria do mar que chegaria
a auspiciosa palavra liberdade
semente sonhada de um paraíso terreno

chegou e logo chamaram invicta à cidade

a torre achando merecer também o epíteto
põe-se nos bicos dos pés de justificado orgulho
e cresce ainda um pouco mais

Anthero Monteiro 
publicado no livro de Helder Pacheco, 
Porto A Torre da Cidade nos 250 anos da Torre dos Clérigos, 
Porto, Edições Afrontamento, 2013, pp. 290/291

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

En tu aniversario







Alejandra Pizarnik,
poeta argentina, 
1936 - 1972











Recibe este rostro mío, mudo, mendigo.
Recibe este amor que te pido.
Recibe lo que hay en mí que eres tú.

Alejandra Pizarnik, Los Trabajos y las Noches, 1965

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Prenda





Rabindranath Tagore,
Calcutá (1861-1941)
Prémio Nobel 1913







Ó meu amor, que prenda
Devo dar-te quando amanhecer?
Uma canção da manhã?
Mas a manhã não dura sempre –
O calor do sol
Murcha como uma flor
E as canções que cansam
Estão feitas.

Ó amigo, quando chegaste ao meu portão
Ao crepúsculo
Que perguntaste?
Que hei-de trazer-te?
Uma luz?
Um candedeeiro de um canto secreto da minha casa silenciosa?
Mas quererás levá-lo contigo
Pela estrada povoada?
Ah,
O vento há-de apagá-lo.

Sejam quais forem as prendas que te possa dar,
Que sejam flores,
Que sejam pérolas para o teu pescoço,
E como te podem agradar
Se com o tempo hão-de murchar,
Desfazer-se, perder o brilho?
Tudo o que as minhas mãos pudessem colocar nas tuas
Deslizará entre os dedos
E cairá esquecido no pó
Para em pó se tornar.

É melhor,
Quando estiveres ociosa,
Que deambules pelo meu jardim na primavera
E deixes um aroma de flor desconhecido e oculto sobressaltar-te com súbito encanto –
Deixar esse momento deslocado
Ser a minha prenda.
Ou se, quando perscrutares a sombria avenida por onde caminhas,
De repente, enfeitiçada
Pelas espessas tranças do anoitecer
Um simples e trémulo reflexo da luz do poente te detiver,
Transforma os teus sonhos em ouro,
E deixa que a luz seja uma inocente
Prenda.

O mais autêntico tesouro desaparece;
Brilha um instante, e depois vai-se.
Não diz o seu nome; a sua melodia
Barra-nos o caminho, a sua dança desaparece
Com o estremecimneto de um tornozelo.
Não conheço outra maneira –
Nenhuma mão, nenhuma palavra o pode alcançar.
Amiga, leves o que levares,
Sozinha,
Sem perguntar, sem saber, deixa que
Seja tua.
Qualquer coisa que eu te possa dar é insignificante –
Seja uma flor, seja uma canção.

Rabindranath Tagore, Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004,
seleção e tradução de José Agostinho Baptista