terça-feira, 30 de abril de 2013
erótica
Desenho
de Picasso
(1963)
abres-me a porta e brotam dos teus braços
mil portas descerrando o paraíso
desabotoas largo o teu sorriso
que enflora os meus sorrisos sempre escassos
abres o quarto a cama o coração
os corações pintados nos lençóis
desafivelas tudo e me propões
libertar da minha alma a cerração
desabrochas as róseas flores do peito
as palavras mais sábias da ternura
acendes uma flor na flora escura
de ti faço o meu leito sobre o leito
confluem num só rio os nossos rios
sem açudes sem diques sem comportas
e despertam ao ritmo das aortas
cicios calafrios arrepios
alarga-se o teu dâblio numa oferta
que me esbuja me puxa que me enleva
e é na incisão onde se agrega a seiva
que ereta esta minha árvore se enxerta
porque senhor de ti já nem sou dono
de mim que me perdi já não me encontro
estreitas nos teus braços talvez outro
mas é nos teus que exausto me abandono
Anthero Monteiro,
Sete Vezes Sete Nuvens, Porto, Egoiste, 2010
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EROS,
Poemas de Anthero Monteiro
Do nada ao tudo
Alunos da Escola
da Bandeira
- V. N. Gaia
ouvem atentos
a leitura de
um poema de
Anthero Monteiro
o que se faz com o nada
que nada vale nadinha?
muda-se só uma letrinha
e do nada faz-se a fada
e da fada faz-se o fado
e do fado faz-se um dado
e que fazer com o dado?
com um pouco de cuidado
muda-se o dado pra dedo
muda-se o dedo pra medo
muda-se o medo pra mudo
e do mudo faz-se tudo
Anthero Monteiro
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Solidão
depois de tal loucura esta lonjura
depois da tua língua
a minha míngua
Anthero Monteiro,
in Goulart Gomes (org.), 501 POETTRX para ler antes do amanhecer,
Bahia - Brasil, Livro.com, 2011
Madrigal
Anthero
Monteiro
perpasso as mãos nos teus cabelos
e sei que acaricio
a madrugada
Anthero Monteiro
in POETRIX ANTOLOGIA,
Scortecci Editora, Bahia - Brasil, 2002
segunda-feira, 15 de abril de 2013
questão de espaço
Foto
A.M.
deus existe
impossível esquecer que mo afiançaram
sempre e com vastas provas
sempre e com vastas provas
reside mesmo dizem em toda a parte
e de todos os modos possíveis
em pé sentado de bruços
de braços cruzados deitado
sobre a linha férrea ou a do horizonte
conheço quem atravanque
o céu e a terra só com as pernas
com a voz sábia e irrefutável
com a voz sábia e irrefutável
ou mesmo a dormir ressonando
deus tem reconheço uma enorme vantagem
existe em toda a parte
perubique partout dappertutto everywhere
mas não ocupa espaço nenhum
Anthero
Monteiro
domingo, 7 de abril de 2013
Tão balalão
Foto
A.M.
Tão balalão
Morreu o Simão…
(Rima infantil)
Tão balalão
Morreu o Simão
Ficou impassível
deitado no chão
os olhos fechados
sem respiração
as mãos apertando
o seu coração
Tão balalão
Morreu o Simão
Morreu sem um padre
e sem confissão
sem sinal da cruz
sem uma oração
Morreu acreditem
que deu um esticão
Tão balalão
Morreu o Simão
Tão novo que ele era
tão flor em botão
Não foi o sarampo
não foi congestão
O certo é que agora
não tem solução
Tão balalão
Morreu o Simão
Já gritam os pais
já chora o irmão
Se os amigos sabem
o que não dirão?
Que notícia triste
p’ró tio João
Tão balalão
Morreu o Simão
Morreu sem aviso
e sem permissão
morreu sem motivo
morreu sem razão
e está sem acordo
não diz sim nem não
Tão balalão
Morreu o Simão
…Mas uma folhinha
que estava no chão
furou-lhe a camisa
fez-lhe comichão
Desatou a rir
mas que maganão
e todos nós vimos
a ressurreição
A morte é ainda
e só reinação
Que dobrem os sinos
no seu balalão
que não morreu não
o nosso Simão
Tão balalão
Quem seria então?
Perguntem ao padre
ou ao sacristão
Anthero Monteiro,
A Lia Que Lia Lia, Porto, Corpos Editora, 2010, 2º edição
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sábado, 6 de abril de 2013
O gafanhoto
Ilustração de
Maria Ferrand
É engraçado o gafanhoto
a jogar no totoloto
Tira o casaco e a gravata
por uns segundos balança
fecha os olhos e se lança
ao ar como um acrobata
Com umas patas assim
e mais a força das asas
paira por cima das casas
das casas do boletim
E depois cai catrapus
num quadradinho qualquer
Na casa que o acaso quer
é lá que faz uma cruz
E é sempre assim que este inseto
aos saltos e às cambalhotas
preenche o boletim de apostas
até que fique completo
E depois o seu fadário
é todo o fim de semana
sonhar deitado na cama
com vir a ser milionário
(Se ao menos o gafanhoto
registasse o totoloto!)
Anthero Monteiro
in José António Gomes (coord.), "Histórias e Poemas para Pessoas Pequenas",
Porto, Porto Editora. s.d.
Bicharada
in
pt.dreamstime.com
Disse-me há pouco o Tonito
que tem muita bicharada:
um hamster, um periquito,
mais uma égua apoldrada,
uns quatro ou cinco cavalos,
sete perus, um pavão,
quinze galinhas, dois galos,
oito cadelas e um cão,
nem me lembro quantos gatos,
um pintassilgo, um canário,
três cisnes, quarenta patos,
peixinhos num aquário,
três ou quatro tartarugas,
um zoo que é uma doidice...
Quanto a pulgas... quanto a pulgas
é que ele nada me disse!
Anthero Monteiro
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sexta-feira, 5 de abril de 2013
Questão de cedilha
Um caçador perdeu a cedilha (...)
(Mário-Henrique Leiria,
Contos do Gin-Tonic)
Ia um caçador à caça
e saindo de um caminho
desembocou numa praça
sempre atrás de um coelhinho
Rodearam a praça toda
sem se saber muito bem
por andarem sempre à roda
quem ia a perseguir quem
E o pobre do caçador
foi quem caiu na armadilha
foi por trás o roedor
e zás roubou-lhe a cedilha
Ah! se se olhassem ao espelho
veriam ambos o horror
daquela figura fraca
o coelho agora é çoelho
e o triste do caçador
é cacador e anda à caca
Anthero Monteiro
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quarta-feira, 3 de abril de 2013
desculpa centopeia
desculpa centopeia era talvez suficiente
calcar-te apenas uma pata
para deixares a parede
onde não ficas bem como obra de arte
mas à razão manietada pelo medo
só lhe resta o recurso à extrema violência
envolve-se num papel a massa informe
de um corpo todo patas todo fuga
e desapareces no gesto de puxar o autoclismo
desapareces mas não a marca da repulsa
no papel de parede não o eco crepitante
da quitina esmagada não o fantasma multípede
que espreita em cada recanto húmido da vida
desculpa centopeia e vê lá se me entendes
era eu inocência e tu malignidade
era eu indefeso e tu eras a insídia
era eu vida borbotando e tu o malefício
a morte subreptícia ameaçando
as defesas do crânio no sono escancaradas
assim me ensinaram as mulheres da casa
para quem eras o maior dos sobressaltos
rapidamente a vítima da vassoura do chinelo
de outro qualquer expediente do arsenal doméstico
de nada vale agora saber do equilíbrio
necessário aos ecossistemas
certo dia e já adolescente ou tu ou uma irmã
miriápode das tuas de súbito irrompeu
do meio do meu livro
de francês
um salto da carteira um grito angustiado
olhou-me a turma atónita sem nada compreender
mas logo o professor o padre rubicundo
desencadeia ali um turbilhão de riso
as-tu peur
d’un mille-pattes mon bébé
foi a noite completa a revolutear no leito
e aquela frase às voltas na cabeça
as-tu peur
d’un mille-pattes mon bébé
e o eco da chacota e outra vez a frase
outro bicho com patas correndo no meu corpo
as tu peur
d’un mille-pattes mon bébé
prometi a mim mesmo que o escárnio
não ficaria impune e a vingança terrível chegaria
no habitual passeio de domingo
um pequeno empurrão e um precipício
nos montes da falperra era o bastante
desculpa centopeia não ter sido capaz
era um tonel repleto de peçonha
e injusto é recair em ti a represália
lá porque tens mil patas cem ou trinta
e aquela exígua fábrica de veneno
no primeiro segmento do teu corpo
pardon pardon mille-pattes
Anthero Monteiro
segunda-feira, 1 de abril de 2013
a cadeira de rodas
vamos
mãezinha eu empurro a cadeira
de rodas
vamos fazer uma longa viagem
até à
varanda que dá para nascente
o sol já
lá canta para saudar-te e um verdilhão
virá
perguntar-te onde tens andado lá do cimo
da grande
japoneira debruçada sobra o tanque
(já não se
lembra decerto do nome da passarada
que
pululava no quintal e que me ensinou a distinguir
verdilhões
pintassilgos carriças chascos cerezinas
cucos andorinhas e lavandiscas sagradas
já nada
lhe diz a história da japoneira secular
onde se
reúnem em concílio as pombas e os pardais)
olha vai
ali mãezinha a filha do antigo sapateiro
que já
morreu há tantos anos ainda te lembras
de que a
oficina era ali do outro lado da rua
será que ainda sabes o nome de alguns dos utensílios
que o pai
dela usava para te fazer ou arranjar o calçado
coser as
gáspeas bater as solas pregar os tacões
(dentro
dela entrou o simum e espalhou um deserto
o silêncio
habita quase sempre este corpo inexpressivo
sabe lá do
senhor angelino sapateiro ou da sua bancada
e ela
outrora sabia e mostrava-me na oficina a turquês
o tripé de
formas os ferros de bornir o martelo
e a pedra
de bater sola a lixa a grosa e a sovela)
pronto não
queres apanhar sol a luz incomoda-te
vamos para
dentro vais ficar ali diante da tv
pode ser
que te distraias um pouco aprendas
algo ainda
e te mantenhas acordada
ou te
acudam à memória algumas lembranças
ou algum
sorriso te aqueça um pouco a alma
(vou ter é
de acender o aquecedor a que ela chama
a caixa de
fogo e esta outra caixa da televisão
não é mais
do que uma janela para o quintal
se vê uma
tourada avisa-me que anda um touro
lá fora
tem cuidado se vê um filme de guerra
o campo de
batalha é logo ali debaixo do limoeiro)
não por
favor não vais adormecer outra vez
espera um
pouco apenas vou trazer-te
cevada e
um pão com geleia ontem gostaste
ah queres
que chegue um pouco para trás
a cadeira
de rodas sim é uma cadeira de rodas
isto
mãezinha não se chama uma carreta
(ontem
reencontrou por acaso a palavra geleia
que deve
ter adoçado um pouco a sua infância
mas a
minha mãe já morreu aliás matou-me repetidamente
depois de
me ressuscitar por momentos com a palavra filho
está morta
por antecipação e quando chama carreta
à cadeira
de rodas está só a dizer-me a minha pobre mãe
que só
falta ir-se embora na carreta funerária)
Anthero Monteiro
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