quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Sulcos da Memória e do Esquecimento, de Anthero Monteiro" - UMA EPIFANIA DA PALAVRA



O livro Sulcos da memória e do esquecimento de Anthero Monteiro é uma ars memoriae, um tecido híbrido de linguagens, cuja corporalidade se recorta livremente, não ferindo, contudo, a natureza singular da escrita poética. Em larga medida, este livro tem um caráter autobiográfico e constitui uma reconstrução poética e metafórica das memórias da infância e doutros momentos da vida, uma reconstituição interpretativa, cuja estratégia passa por uma espécie de álbum verbal, construído com imagens-modelo do quo­tidiano, que conjuga magistralmente a trama narrativa com a linguagem da poesia.

Comecemos pelo título Sulcos da memória e do esquecimento: o termo “sulco” aponta para a ideia de ferida, ruga, caminho. E de facto é disso que se trata: de um caminho, de uma experiência pessoal vivida e sentida na sua inteireza. É um percurso identitário onde a memória tem um lugar privilegiado numa linha isotópica constante.

A exploração cria­tiva das memórias dolorosas revela-se em inúmeras experiências, nomeadamente, a experiência vivida no tempo em que era aluno num colégio:

olho estas mãos e nem elas esquecem
que eram naquele tempo dedinhos de ternura
(…)
quem há de esquecer a brutalidade
exercida sobre a inocência
o escárnio perante a candura
o ardil para surpreender a falta
o sadismo das punições em série
a adolescência ocupada pela arbitrariedade
(…)

Neste livro espaço/tempo há construção e reconstrução, há montagem de escombros e fragmentos de um passado que se torna presente pela vontade do sujeito poético, pelo trabalho laborioso de (re)significação das memórias dolorosas.

Através da poesia, o poeta procura libertar-se das vivências que ainda permanecem retidas no arquivo da memória e o aprisionam, não hesitando em ex­por corajosamente eventos autobiográficos. O poema “diavolo in corpo” evoca a imagem da relação primordial mãe/filho de aguda ambivalência, para ser exorcizada da memória, para constituir, depois, uma espécie de reconciliação tardia com a infân­cia, sobretudo com a memória da mãe. A imagem evocada, não sendo a imitação do facto, corresponde à forma visível da possibilidade de existência.

Neste registo da memória, nesta reconstrução da existência, convém entender também a ordem e a seleção implicada nos momentos significativos da narrativa pessoal. O poeta configura primeiramente o espaço da intimidade onde circulam os afetos, as angústias, os sucessos, constituindo uma espécie de diário íntimo. Depois vai tecendo também uma teia de relações, uma teia que é portadora da memória dos outros que se entretece com a memória pessoal e que diz, não apenas respeito à história pessoal, à memória individual, mas também à das pessoas que o acompanham no decurso da vida.
O esquecimento é aqui entendido como uma força modeladora, uma espécie de guardião da consciência, tal como o concebeu Nietzsche, capaz de fechar as portas da consciência, poupando o ser ao sobressalto das lutas que se travam na interioridade, assim permitindo, temporariamente, alguma tranquilidade e até alguma esperança. Sem esta funcionalidade do esquecimento, o ser não experimentaria o presente e tornar-se-ia prisioneiro do passado.
É a memória que capacita o ser para o novo, que capacita o ser para se reinventar, projetando-se outro no futuro, ou seja, através da memória e do esquecimento, como mecanismos ativos, o homem apropria-se de novas formas de viver a vida, de novas formas de lidar com a temporalidade, de novas formas de reconciliação.
Como bom discípulo de Nietzsche, o sujeito poético desce ao seu próprio submundo, autoanalisa-se, sofre desmesuradamente, esquece/assimila o que considera mais apropriado, lembra/continua a querer o já querido, através da memória da vontade, e emerge, já desprovido de ressentimento, já reconciliado, liberto para o novo.

No poema “a besta” o poeta afirma: este é o panegírico possível / quase já despido de ódios porque a morte / tudo lava e leva; no poema “diavolo in corpo” volta a afirmar: escrevo este poema para esconjurar / de vez a lembrança de cada chicotada / e nunca me esquecer / do maternal amor.

Mas, como já se disse, este livro é uma ars memoriae. Também aqui se dá conta do estiolar da memória, da sua perda, da perda de si e do outro porque já não se tem a capacidade de lembrar ou de reter e se habita o agora que é um tempo/espaço do vazio; porque a mãe que eu julgava / ter-me trazido ao mundo / esqueceu/ o meu nome; porque dentro dela entrou o simum e espalhou um deserto / o silêncio habita quase sempre este corpo inexpressivo.

Sulcos da Memória e do Esquecimento revela ainda uma aguda consciência do efémero, e a noção de uma espécie de agoridade, que configura o momento em que o tempo passa a ser compreendido como um espaço de passagem. Assim, por exemplo, em “primeiros passos” o poeta confirma estes pressupostos:  

tudo poderia ter sido como na tela de millet
mais tarde reinventada a seu modo por van gogh
é como se ambos tivessem presenciado a mesma cena
não de ângulos diversos mas em momentos diferentes

Pelo que já se enunciou, pela escrita, antes de mais. Pelo conteúdo. Pelo imaginário. Pela nobreza com que evoca o tradicional e convoca a originalidade.

Pelo desvendamento de um certo modo de ser português, pela imensa capacidade de perdão, pelas infinitas leituras que a obra permite, pela vocação intertextual… é lícito afirmar que este livro é uma das joias da literatura portuguesa.

Maria Helena Padrão 
doutorada em Teoria da Literatura
investigadota do CELCC CIAC e CETAC

in "AS ARTES ENTRE AS LETRAS" n.º 114 - 15 janeiro 2014