sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Um domingo e muitos mais




















será exíguo o fio da minha vida
mas foi urdido com algumas eternidades
foram eternidades os minutos da minha espera
debaixo das palmeiras do adro
naquela tarde de domingo
lembras-te certamente: dois enormes exemplares
emolduravam a igreja da nossa terra
nos primeiros anos da década de sessenta

dali via-se ao longe o oceano e contemplando-o
ensaiava a intimidade com o absoluto
mal chegaste começou a vida do mortal
que assiste à vertigem das horas no relógio da torre
afoguei os meus olhos no mar que trazias nos teus
e deixei-me submergir nos sobressaltos da surpresa
partimos pelas ruas atónitas da aldeia
com as palmeiras a flabelar adeuses
e os pássaros nas tílias interpretando vivaldi

foi o nosso primeiro passeio lado a lado
duas brevíssimas horas daquela semana diferente
porque passou finalmente a haver domingo
enfim reparaste que eu sobraçava um livro
(se me conhecesses bem saberias que o livro era inevitável)
e pudeste ler-lhe o sugestivo título:
davam grandes passeios aos domingos

hoje régio há-de interrogar o seu deus e o seu diabo
para entender como afinal o nosso passeio ainda dura
já lá vão mais de quarenta anos pelas caminhos 
da nossa aldeia com horizontes líquidos ao fundo
arrancaram as palmeiras arrancaram as tílias
mas ninguém conseguiu arrancar o meu olhar do teu

prefiro continuar a ver o atlântico nos teus olhos

Anthero Monteiro,

Sulcos da Memória e do Esquecimento
Porto, Corpos Editora, 2013

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O riso de Felismundo













Quero rir-me mas em vão
que vida assim não dá riso
pois já lá diz o rifão
que quem se ri sem razão
é porque tem pouco siso.
Assim meu riso é só um:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Meio doido da cabeça
não me responsabilizo
se me sair este riso
que talvez choro pareça
e não tem jeito nenhum:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Ser feliz eu bem queria
e ainda que tenha fome
sou-o ao menos de nome
e finjo a enorme alegria
dos foguetes pum pum pum:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Mas é com grande alvoroço
que rio mais do que um momo.
Até parece que como
riso ao jantar e ao almoço
e assim não fico em jejum:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Rir assim até me custa.
Pareço dono do mundo
mas sei bem que lá no fundo
pra muitos a vida é injusta.
Rir assim não é comum:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Mas não quero entristecer
tudo quanto me rodeia.
Por isso tenho esta ideia
de rir sem me apetecer
e sem ter motivo algum:

ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum
ferrum fum fum

Anthero Monteiro (inédito)


domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Lia que lia lia




Capa do livro 
em que se insere 
o poema seguinte 
que lhe serviu 
de título




Minha boa amiga Lia
muito lia  muito lia
Lia de noite e de dia
lia lia lia lia

Lia tudo o que queria
Zoologia Geologia
lia até Psicologia
livros de Filosofia
mapas de Geografia
temas de Pedagogia
problemas de Economia
tratados de Biologia
volumes de Biografia
coisas da Tecnologia
e tanta bibliografia
que já ninguém avalia
quantas páginas a Lia
tinha lido ao fim do dia

Minha boa amiga Lia
muito lia muito lia
lia de noite e de dia
lia lia lia lia

De manhãzinha ela lia
só parava ao meio-dia
sopa de letras comia
mas quase nem engolia

À tarde nem se mexia
lia tudo o que podia
lia tudo por mania
tudo o que na estante havia
na biblioteca existia
ou então na livraria

À noite pouco dormia
lia à luz da almotolia
e sempre que adormecia
sonhava que lia lia
lia relia treslia
sempre sem uma arrelia
sempre a sorrir de alegria
sem sentir monotonia
ou sofrer de miopia
ou de qualquer alergia

Minha boa amiga Lia
muito lia muito lia
lia de noite e de dia
lia lia lia lia

A mãe lavava e cosia
espanejava e varria
e ela lia lia lia

O pai gastava a maquia
ia ao casino e perdia
e ela lia lia lia

A irmã pouco fazia
pois tinha paralisia
e ela lia lia lia

O irmão era só folia
só folguedo e romaria
e ela lia lia lia

A avó coitada dormia
esperando a morte fria
e ela lia lia lia

O avô que quase não via
em vão chamava pla Lia
e ela lia lia lia

O primo só televia
todos os canais que havia
e ela lia lia lia

E enquanto a prima Maria
ia prà Cova da Iria
ela lia lia lia

O tio era uma apatia
era uma vida vazia
e ela lia lia lia

 Melhor do que ele era a tia
mas morreu com anemia
e ela lia lia lia

E enquanto eu escrevia
esta longa poesia
a Lia toda crescia
em grande sabedoria
porque lia lia lia
lia lia lia lia

Ler como ela ninguém lia
ler como ela só a Lia

Anthero Monteiro
“A Lia Que Lia Lia”, 2.ª edição, Corpos Editora, Porto, 2010